Numa noite estrelada, Serafim deslizava o seu barco pelas águas do rio
São Francisco. Exibia orgulhosamente a sua nova carranca. Serafim
afastara-se dos outros barqueiros. Através das águas do velho Chico
adentrava o sertão. Guiava-se pelas estrelas, que lhe revelavam as
horas. O silêncio da noite era cortado pelo barulho, ao longe, da
cachoeira que estava próxima. Cada estrela iluminava o rosto do
barqueiro, tornando-o luminoso.
Já quase próximo da meia-noite, Serafim foi, de repente, acometido por um cansaço extenuante, que trazia uma lassidão ao seu corpo, quase que em forma de encantamento. Vendo as forças a faltar-lhe, o barqueiro deitou-se na barca. Sentiu que uma força magnética conduzia-o pelo rio. Cada vez mais sentia o barulho da cachoeira aproximar-se. Imóvel, viu a barca parar. No céu a estrela guia indicava-lhe que era meia-noite. Quanto mais brilhava a estrela, mais claras ficavam as águas do rio São Francisco.
Serafim continuava imóvel, deitado sobre a barca. Então um silêncio absoluto reinou ao seu redor. A cachoeira cessou o barulho das suas águas. Diante da calmaria silenciosa, o barqueiro lembrou-se que aquele era o dia do Sono do Rio, e que nenhum movimento poderia interromper o momento único, pois ele se dava apenas uma vez no ano. Bem devagar, para não perturbar o Sono do Rio, Serafim tirou dos bolsos um pedaço de fumo cortado. Estendeu as mãos e o pôs sobre a popa. Continuou imóvel. Foi quando viu a imensa mão do Negro d’Água fazer uma grande sombra sobre a barca. Ao ver o fumo cortado sobre a popa, o estranho visitante desistiu de atacar Serafim, apossou-se do fumo e partiu.
O São Francisco continuava a dormir. Serafim permanecia em silêncio, olhando fixamente para o céu estrelado. De repente surgiu a Mãe d’Água, metade peixe, metade mulher. Sentou-se sobre a proa da barca, a pentear os belos e longos cabelos verdes, como se fizesse uma oração ao Sono do Rio.
Serafim sabia que o Sono do Rio durava apenas um segundo, mas tudo parecia eterno durante aquele segundo. As cobras perdiam a sua peçonha, os peixes ficavam imóveis no fundo do rio. De repente o belo canto da Mãe d’Água ecoou, como se velasse o Sono do Rio. Diante do seu canto, o São Francisco abriu o seu abismo hiante, devolvendo todos os homens que em suas águas morreram afogados. Serafim viu os mortos retomando a forma dos seus corpos, flutuando no ar, indo para o céu, guiados pelo clarão das estrelas.
Quando o último homem desapareceu no céu, também a Mãe d’Água sumiu. A cachoeira voltou a correr normalmente. Serafim apercebeu-se que a beleza que vira há pouco tinha findado. Sentiu-se o mais feliz dos sertanejos. As forças voltaram ao seu corpo. Pensou em levantar-se, mas continuou inerte, deitado sobre a barca por mais um minuto, para ter a certeza de que não iria atrapalhar o Sono do Rio.
Fonte: http://virtualia.blogs.sapo.pt/2009/03/
Ilustrações: José Lanzellotti
Adaptação livre de Jeocaz Lee-Meddi para textos de Brasil, Histórias, Costumes e Lendas.
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Uma das lendas brasileiras mais bonitas que já ouvi, repleta de magia.
Aí está uma boa maneira de conhecermos melhor nossa ancestralidade: conhecendo as lendas brasileiras. Quando falo que nós pagãos brasileiros devemos nos atentar sobre o que significa honrar a nossa ancestralidade (ponto essencial da espiritualidade pagã), estou falando que além de honrar nossa ancestralidade por afinidade espiritual e a nossos ancestrais da família, devemos também honrar os ancestrais da nossa terra. E quem são os ancestrais da terra (pelo menos aqui no Norte-Nordeste)? São os espíritos que habitam e guardam essa terra, que aqui atendem pelo nome de caboclo, caipora, mãe d'água, saci... -- para citar os mais famosos.
Honrar esses espíritos significa respeitá-los da mesma forma que respeitamos gnomos, duendes, fadas, ondinas, anjos, gênios, devas, e uma infinidade de outros espíritos que tem sua origem no folclore de outras regiões do mundo, especialmente da Europa. Penso que tudo começa com procurar conhecê-los.
Achei essa lenda preciosa, pois está muito pouco ou nada "contaminada" pelo cristianismo e nos mostra um pouco da relação e comportamento desses seres "mágicos" da nossa terra. E não adianta querermos pasteurizar, colocar tudo num saco só e acharmos que espíritos da natureza são todos iguais seja aqui seja em qualquer outro lugar. Não... Mãe d'água é Mãe d'água, sereia é sereia, saci é saci, duende é duende, e assim por diante. O princípio básico pode até ser o mesmo, mas se for pra pensar assim, o princípio básico de tudo e qualquer coisa é o mesmo.
Me permitam arriscar umas interpretações da lenda:
Ilustrações: José Lanzellotti
Adaptação livre de Jeocaz Lee-Meddi para textos de Brasil, Histórias, Costumes e Lendas.
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Uma das lendas brasileiras mais bonitas que já ouvi, repleta de magia.
Aí está uma boa maneira de conhecermos melhor nossa ancestralidade: conhecendo as lendas brasileiras. Quando falo que nós pagãos brasileiros devemos nos atentar sobre o que significa honrar a nossa ancestralidade (ponto essencial da espiritualidade pagã), estou falando que além de honrar nossa ancestralidade por afinidade espiritual e a nossos ancestrais da família, devemos também honrar os ancestrais da nossa terra. E quem são os ancestrais da terra (pelo menos aqui no Norte-Nordeste)? São os espíritos que habitam e guardam essa terra, que aqui atendem pelo nome de caboclo, caipora, mãe d'água, saci... -- para citar os mais famosos.
Honrar esses espíritos significa respeitá-los da mesma forma que respeitamos gnomos, duendes, fadas, ondinas, anjos, gênios, devas, e uma infinidade de outros espíritos que tem sua origem no folclore de outras regiões do mundo, especialmente da Europa. Penso que tudo começa com procurar conhecê-los.
Achei essa lenda preciosa, pois está muito pouco ou nada "contaminada" pelo cristianismo e nos mostra um pouco da relação e comportamento desses seres "mágicos" da nossa terra. E não adianta querermos pasteurizar, colocar tudo num saco só e acharmos que espíritos da natureza são todos iguais seja aqui seja em qualquer outro lugar. Não... Mãe d'água é Mãe d'água, sereia é sereia, saci é saci, duende é duende, e assim por diante. O princípio básico pode até ser o mesmo, mas se for pra pensar assim, o princípio básico de tudo e qualquer coisa é o mesmo.
Me permitam arriscar umas interpretações da lenda:
- O Sono do Rio é um momento mágico que se dá apenas uma vez no ano, durante a meia-noite, em um segundo que parece uma eternidade. -> essas questões temporais são interessantes. Os mais velhos já diziam que não é seguro estar na rua à meia-noite. E os bruxos bem sabem que é o horário indicado para se realizar determinados tipos de magia. (o porquê disso fica para outro post... rs).
- Quem segue o Antigo caminho também sabe, por exemplo, que quando traçamos um círculo sagrado, construímos um espaço fora do tempo, e ali o tempo passa de outra forma. Como por exemplo, no mundo dos sonhos: qualquer um já passou pela experiência de cochilar durante segundos e parecer muitas horas. Ou seja, Serafim, naquele segundo que 'parecia uma eternidade', estava dentro de um momento mágico, no "tempo fora do tempo".
- Quando Serafim se lembrou que se tratava do dia do Sono do Rio, tratou te tirar o fumo do bolso e deixar na polpa, o que, penso eu, não fez à toa, já que logo depois chega o Negro d'agua, e em vez de atacá-lo, recebe aquele pedaço de fumo, que podemos considerar assim, uma oferenda de Serafim para acalmar o espírito perigoso do rio, ou simplesmente o guardião do rio. Quem conhece um pouco de xamanismo, sabe que é comum entre o xamanismo indígena, de uma forma geral, usar o fumo/ tabaco como oferenda.
- E aparece a figura da Mãe d'água, que não deve ser confundida com Iemanjá ou Oxum, pois essas são orixás -- é como confundir Afrodite com uma ninfa. A Mãe d'água parece ser central nessa história, pois é através de seu canto que o encanto do Sono do Rio acontece: os mortos afogados vão para o céu (opa, já vi algo assim num filme famoso! rs)