Eu queria aproveitar que está em alta falar do Sagrado Feminino e dos "arquétipos" pra poder falar sobre parir em nossa sociedade.
Vou tentar ser breve, mas é difícil em um tema como este.
Tenho passado por este processo de gravidez descobrindo todo um mundo novo; um mundo de amores e horrores, estes últimos causados pela opressão do ser feminino em nossa sociedade e pela grande desconexão com o nosso próprio corpo, ou com nossa "natureza".
Em grupos sobre o tema do parto humanizado* ou em conversas com amigos simpatizantes do tema é muito comum ouvir a expressão "poxa, fulana foi guerreira", depois da fulana ter relatado as violências obstétricas** que sofreu durante seu parto.
Vamos sublinhar e analisar essa palavra, GUERREIRA, que não é uma simples palavra, carrega todo um peso de significado, sentimento e acaba perpetuando certos equívocos que cometemos sem nos dar conta.
Eu imagino que quando alguém diz que a mulher foi guerreira, ela está, na maior das boas intenções, parabenizando a mulher por ter aguentado passar por um processo de violência e ter sobrevivido, parece lógico, não é mesmo?
Eu tenho a forte impressão de que isso levanta a autoestima da mulher e até a conforta, diante de uma dura lembrança de violência sofrida, nada mais natural... porém tenho a impressão também que essa expressão, "guerreira, lutadora, sangue nos olho" e similares, dá um certo status para a mulher que passou por uma violência dessas e acaba naturalizando a coisa. É como se a vida fosse dura mesmo e precisamos ser guerreiras.
E se eu dissesse que NÃO, que nem sempre precisa ser assim, e em certos casos é inadequado ver a "superação pela luta" como algo positivo?
Por exemplo: alguém diz que uma mulher que sofreu estupro foi guerreira porque sobreviveu à esta terrível experiência? É estranho dizer isso, né? Soa mal. Então, pq não soa mal também quando estamos falando de uma mulher que sofreu outro tipo de violência, como a obstétrica? Longe de mim tirar o mérito de uma mulher que despertou sua guerreira para conseguir sobreviver à experiência de violência obstétrica... mas quem é violentada, é vítima, estão captando o x da questão?
Fomos acostumados pelo senso comum, filmes de hollywood, novelas, etc, a olhar o momento do parto como uma verdadeira guerra, afinal, o parto evoca muitas símbolos relacionados ao nosso lado bélico: grito, dor, força, ação, sangue, quase um combate entre a mãe, bebê e entorno.
Muito pelo contrário: o parto é uma colaboração da mãe e do bebê, por um só objetivo: a vida. Pode ter grito, pode ter força, dor e sangue, com certeza, mas são de outra natureza: são da natureza do amor e não do ódio, pois mesmo a dor, no parto, é uma dor "de vida" e não "de morte", como muito bem definiram algumas mulheres nos grupos de discussão.
Algo muito importante precisa ser compreendido: o parto é momento de entrega. A mãe precisa relaxar, fluir, confiar, entregar-se àquela experiência que transcende sua condição ordinária. Não é momento para pegar em armas, escudo, ira e despertar sua guerreira contra aqueles que deveriam estar acolhendo-a nesse momento tão precioso, mas ao invés disso, estão colocando ela e seu bebê em risco. A mãe pode e deverá ser guerreira em vários momentos de sua maternagem, mas no parto, não!
Este é um momento único, onde estes dois arquétipos, da mãe e da guerreira são incompatíveis.
Não era pra ser assim, mas infelizmente, em nossa sociedade, são poucas as mulheres as quais é permitido vivenciarem seu parto plenas, como mães, e só. E dessas milhares que sofrem violência todos os dias nos hospitais, nem todas conseguem ser "guerreiras" e acabam por sofrer violências maiores (pois uma intervenção desnecessária -- logo violenta -- leva a outras), e muitas morrem ou tem seu bebê morto.
A mulher ao sofrer violência obstétrica ou qualquer outro tipo de violência, foi vítima, não há nada de bom nisso, nenhum lado bom, então vamos tomar cuidado ao enaltecer essa situação com expressões como "guerreira", por mais que nossa intenção seja a mais nobre. Parece uma palavra boba, mas não é. A mulher que foi vítima vai se curar, vai lamber as feridas, vai precisar de ajuda, podemos ajudá-la de mil outras formas, inclusive despertando a consciência geral de que violência obstétrica é inaceitável e não há nada que amenize isso.
*parto humanizado: Uma importante questão a ser esclarecida é que o termo "Parto Humanizado" não pode ser entendido como um "tipo de parto", onde alguns detalhes externos o definem como tal, como o uso da água ou a posição, a intensidade da luz, a presença do acompanhante ou qualquer outra variável. A Humanização do parto é um processo e não um produto que nos é entregue pronto. (fonte: http://www.despertardoparto.com.br/o-que-e-parto-humanizado.html )
**violência obstétrica: No mundo inteiro, muitas mulheres sofrem abusos, desrespeito e maus-tratos
durante o parto nas instituições de saúde. Tal tratamento não apenas viola os
direitos das mulheres ao cuidado respeitoso, mas também ameaça o direito à
vida, à saúde, à integridade física e à não-discriminação (fonte: Declaração da OMS)
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