A apropriação cultural contra os povos indígenas vai muito além de vestir um cocar, uma tanga e pintar a cara no Carnaval. Isso é obviamente ridículo. Existem outras formas de ajudar a matar uma cultura, muito mais sutis e revestidas de ações contra-cultura, porém são apenas mais uma faceta do velho colonialismo, romantizando o índio com o ideal do "bom e nobre selvagem" e transformando partes de sua cultura em produto, o que acaba atingindo as próprias comunidades.
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Desconheço a autoria da arte. Encontrei num dos únicos sites pagãos brasileiros que vi discutindo esta questão. Acesse aqui |
Ao longo de mais de uma década que eu me dedico a espiritualidade animista ligada aos ciclos da natureza*, tenho visto as pessoas se aproximarem do Neo xamanismo levadas principalmente por dois interesses: as plantas de poder e animais de poder ou Totens.
É legítimo que as pessoas se sintam atraídas pelos conhecimentos e experiências espirituais dos povos originários ao redor do planeta. O que não é bom, é a apropriação cultural que se fez disso, por muitas pessoas que se dizem xamanistas ou até xamãs. Os povos indígenas do mundo já sofreram bastante com o genocídio e etnocídio, para verem o que conseguiram salvar de suas tradições sendo roubadas pelo mundo branco, pasteurizadas e praticadas de forma utilitarista, individualista e via de regra comercial.
E não me levem a mal, eu estou numa situação complicada para falar disso. 1. Não sou indígena. 2. Sou antropóloga 3. Segui o Neo xamanismo durante muito tempo.
1. Não sou indígena, no máximo sou indiodescendente, mas isso não me dá o direito de falar sobre uma questão deles. Porém, recentemente percebi vozes dos povos indígenas se levantando contra essa apropriação cultural e não vejo isso ser muito discutido (em português) no meio da espiritualidade pagã e neoxamânica, o que me inquieta. Se você se interessou pelos sistemas espirituais indígenas, você deveria no mínimo se importar com o que eles clamam. Você pode conferir algumas das discussões neste link, neste, neste e neste É importante conhecer.
2. Sou bacharel em Antropologia, e por isso mesmo eu sei que essa ciência nasceu à serviço do colonialismo, totalmente contaminada de uma visão eurocêntrica. Então, nem tudo que você leu sobre povo tal num texto antropológico corresponde à realidade. O Totemismo, por exemplo, é uma teoria debatida por famosos pensadores como Durkheim, Freud e Levi-Strauss. Isso não significa que o Totemismo exista, ou tenha existido, da maneira que eles propõe, na vida real. Mas é fácil cair nessa cilada, pois afinal, "a ciência é imparcial" #sóquenão
3. Segui o Neoxamanismo durante muito tempo. Mas um dia eu acordei pra realidade que não importa o quanto eu busque trilhar o "caminho original" , beber na fonte "pura" de algum neoxamã que aprendeu diretamente com o pajé, ou até num livro do Carlos Castaneda (ah, pára!). Eu NUNCA vou ser iniciada nos mistérios espirituais daquele ou daquele outro povo, pelo simples fato, primeiramente, de que eu NÃO ESTOU INSERIDA EM SEU CONTEXTO SOCIAL.
Passar 1 ano recluso nas profundezas da floresta se preparando para se tornar um/a líder espiritual (pajé, curandeiro, qual seja o título em cada povo), seguindo tradições milenares passadas de geração em geração, é diferente de fazer um curso de uma semana como "facilitador" ou "terapeuta" xamânico.
Porém ambos administram Ayahuasca, ambos fazem a cerimônia da chanupa, ambos realizam o Temazcal, confeccionam rapé... E por aí vai o vocabulário xamânico, até perder de vista.
"Ah Luiza, você está insinuando que os facilitadores xamânicos e correlatos são impostores"?
Não necessariamente. Ambos podem curar! (a eficácia simbólica ainda é uma ótima teoria nesse caso). Mas por que, pra começar, nós não EXPANDIMOS nosso vocabulário? Explico:
Por que ao invés de divulgar seu evento (muitas vezes pago) como "um ritual ancestral do povo X", não temos a honestidade e respeito em deixar claro que aquilo é uma versão, uma inspiração ou (como chamam?) uma "canalização" de um sistema espiritual muito mais complexo do que aquilo que está sendo apresentado por nós "brancos"?
Não é muito difícil. É uma questão de honestidade e de honrar os povos detentores dessas tradições. Mas infelizmente muita gente não quer mudar, o marketing em cima de palavras como "Temazcal" é muito maior do que, por exemplo "tenda de purificação".
Só um adendo aqui. A discussão em torno do uso das plantas de poder fora do contexto nativo carece de um debate mais profundo, por, além de tudo, envolver aspectos Legais e de saúde.
Esse texto não pretende esgotar o assunto nem substituir as falas dos próprios povos originários. É apenas uma provocação para refletirmos sobre o que está sendo reproduzido por nós.
Pará mim não está sendo fácil ressignificar anos de dedicação. Mas nada foi em vão e sou imensamente grata a tudo que aprendi e às pessoas que me ensinaram. Eu sempre fui e sou Falcão Marrom. Porém hoje sei que o falcão não é meu totem, tampouco animal de poder - infelizmente eu não nasci entre os Anishinaabe para encontrar meu "spirit animal". No entanto, eu sei dentro de mim o que é real, e sei que o falcão é meu aliado. Eu posso sentir a conexão e pasmem, eu não preciso chamar de "totem" ou qualquer vocabulário de praxe para fazer sentido. Na falta de um coletivo que possa me guiar, eu posso e vou andar com minhas próprias pernas.
Também estou ciente que vai ter muita gente se sentindo ofendida (não é minha intenção perder meu precioso tempo ofendendo ninguém). É sempre melhor sermos verdadeiros com aquilo que acreditamos, eu não me intimido com haters.
Li um pataxó dizendo algo muito interessante do qual deveríamos tirar uma lição:
“O Toré é do norte, não é nosso”. Alguns, a exemplo do pajé Manoel Santana, reagem, muito negativamente, à possibilidade de admissão dessa prática, sob o argumento de que “não pode copiar isso aí, não, que não é nosso, quando o pessoal do norte chegar, nós vamos passar vergonha e não pode cantar isso lá. Cada um representa o que é seu. Representar o que é dos outros?”.(fonte: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Patax%C3%B3)
E esse é só o começo de meu caminho de libertação.
Pará mim não está sendo fácil ressignificar anos de dedicação. Mas nada foi em vão e sou imensamente grata a tudo que aprendi e às pessoas que me ensinaram. Eu sempre fui e sou Falcão Marrom. Porém hoje sei que o falcão não é meu totem, tampouco animal de poder - infelizmente eu não nasci entre os Anishinaabe para encontrar meu "spirit animal". No entanto, eu sei dentro de mim o que é real, e sei que o falcão é meu aliado. Eu posso sentir a conexão e pasmem, eu não preciso chamar de "totem" ou qualquer vocabulário de praxe para fazer sentido. Na falta de um coletivo que possa me guiar, eu posso e vou andar com minhas próprias pernas.
Também estou ciente que vai ter muita gente se sentindo ofendida (não é minha intenção perder meu precioso tempo ofendendo ninguém). É sempre melhor sermos verdadeiros com aquilo que acreditamos, eu não me intimido com haters.
Li um pataxó dizendo algo muito interessante do qual deveríamos tirar uma lição:
“O Toré é do norte, não é nosso”. Alguns, a exemplo do pajé Manoel Santana, reagem, muito negativamente, à possibilidade de admissão dessa prática, sob o argumento de que “não pode copiar isso aí, não, que não é nosso, quando o pessoal do norte chegar, nós vamos passar vergonha e não pode cantar isso lá. Cada um representa o que é seu. Representar o que é dos outros?”.(fonte: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Patax%C3%B3)
E esse é só o começo de meu caminho de libertação.
*animista, por falta de termo melhor, refere-se a uma cosmovisão que acredita que tudo é dotado de espírito.
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